segunda-feira, 8 de junho de 2009

A Bula - Luis F Veríssimo



- Vai, Horácio. Toma logo.
- Eu não tomo nada sem antes ler a bula. Cadê meus óculos?
- Pendurados no seu pescoço.
- Isso é ridículo, Maria Helena. Ridículo!!!
- Então, todos os homens da sua idade são ridículos. Porque
todos estão tomando! E não me puxa esse lençol, fazendo o
favor. Olha aí o bololô que você me faz nas cobertas!
- A humanidade conseguiu crescer e se multiplicar durante
milênios sem isso. Nós dois crescemos e nos multiplicamos
sem isso. Taí o Pedro Paulo, taí o Zé Augusto que não me
deixam mentir. Fora aquele aborto que você fez.
- Horácio, eu não vou discutir isso com você agora. Toma
logo esse negócio.
- Isso aqui faz mal pro coração, sabia? Um monte de gente já
morreu tentando dar uma trepadinha farmacêutica.
- Foi por uma boa causa. E não faz mal coisa nenhuma. Só pra
quem é cardíaco e toma remédio. Você não é cardíaco. Nem
coração você tem mais.
- Não começa, Maria Helena, não começa.
- Pode ficar sossegado que você não vai morrer do coração
por causa dessa pilulinha. Eu vi num programa do GNT um
velhinho de 92 anos que toma isso todo dia.
- Sério?
- Preciso de sexo, Horácio.
- Mas hoje é segunda, Maria Helena...
- Quero trepar!!! Foder!!! Ser comida por um macho de pau
duro!!!
- Francamente, Maria Helena, que boca. Parece que saiu da zona.
- Quero ser penetrada, quero gozar.
- O sexo é uma ditadura, Maria Helena A gente tá na idade de
se livrar dela.
- Saudades da dita dura. Olha só, você me fez fazer um
trocadilho de merda.
- Além do mais, Maria Helena, nós já tivemos um número mais
do que suficiente de relações sexuais na vida, por qualquer
padrão de referência, nacional ou estrangeiro. A quantidade
de esperma que eu já gastei nesses anos todos com você dava
pra encher a piscina aqui do prédio.
- Com o esperma que você ordenhou manualmente, talvez. O que
o senhor gastou comigo não daria nem pra encher o bidê aqui
de casa. Um penico, talvez. Até a metade.
- Maria Helena...
- E faz quase um ano que não pinga uma gota lá dentro!
- Sossega o facho, mulher. Vai fazer ioga, tai chi chuan. Já
ouviu falar em feng shui, bonsai, shiatsu ? Arranja um
cachorro. Quer um cachorro ? Um salsichinha?
- Quero um salsichão, Horácio. Olha aí: outra piadinha infame.
- É porque você está com idéia fixa nessa porcaria.
- Que porcaria?
- O sexo, Maria Helena, o sexo.
- Sabe o que mais que deu naquele programa sobre sexo, Horácio?
- Não estou interessado.

Deu que as mulheres com vida sexual ativa têm muito menos
chance de ter câncer. É científico.
- Come brócolis que é a mesma coisa, Maria Helena. Protege
contra tudo que é câncer. Também é científico, sabia? E
puxado no azeite, com alho, fica uma delícia.
- A que ponto chegamos, Horácio. Eu falando de sexo e você
me vem com brócolis puxado no azeite!
- Com alho.
- Faça-me o favor, Horácio.
- Maria Helena, escuta aqui, você já tem 50 anos, minha
filha, dois filhos adultos, já tirou um ovário, já...
- Não fiz 50 ainda. Não vem não. E o que é que filho e
ovário têm a ver com sexo?
- Maria Helena, me escuta.
Depois de uma certa idade as mulheres não precisam mais de sexo.
- Ah, não? Quem decidiu isso?
- Sexo nessa idade é pras imaturas. Pras deslumbradas, pras
iludidas que não sabem envelhecer com dignidade.
- Prefiro envelhecer com orgasmos
- O que é que o Freud não diria de você, Maria Helena.
- E de você, então, Horácio? No mínimo, que você virou gay
depois de velho. Boiola.
- Maria Helena! Faça-me o favor. Eu tenho que ouvir isso na
minha própria casa, na minha própria cama,diante da minha
própria televisão?
- Aliás, gay gosta de trepar. É o que eles mais gostam de
fazer. Você virou outra coisa, sei lá o quê. Um pingüim de
geladeira, talvez.
- Maria Helena, dá um tempo, tá? Tenho mais o que fazer.
- Fazer? Essa é boa. O que é que um bancário aposentado com
salário integral tem pra fazer na vida, posso saber? Ficar
jogando bilhar a tarde inteira?
- Sem comentários, Maria Helena, sem comentários.
- Tá bom, sem comentários. Bota os óculos e lê duma vez essa
bendita bula.
- Só que precisa de dois óculos pra ler isso. Olha só o
tamanhico da letra. Se é um negócio pra velho, deviam botar
uma letra bem grande. Pelo menos isso.
- Vira o foco do abajur para cá... assim... melhorou?
- Abaixa essa televisão também. Não consigo me concentrar
ouvindo novela. Mais. Mais um pouco.
- Pronto, patrãozinho. Sem som. Vai, lê duma vez.
- O princípio ativo do medicamento é o citrato de sildenafil.
- Sei.
- Veículos excipientes: celulose microcristalina...
- Celulose vem da madeira. Pau, portanto. Bom sinal.
- Onde foi parar a sua pouca educação, Maria Helena?
- Vai lendo, Horácio.
Depois conversamos sobre a minha pouca educação..
- Cros... camelose sádica. Croscamelose. Castrepa, Maria
Helena. Me recuso a tomar um troço com esse nome.
Deve ser alguma secreção de camelo. Se não for coisa pior.
- Não é camelose. Num tá vendo aí? É caRmelose.
Deve ser algum adoçante artificial. Pro seu pau ficar doce, meu bem.
- Putz. Só rindo mesmo. A menopausa acabou com a sua
lucidez, Maria Helena.
- Troco toda a lucidez do mundo por um pau tinindo de tesão
por mim.
- Absurdo, absurdo.
- Que mais, que mais, Horácio?
- Dióxido de titânio.
- Ah, titânio. Pro negócio ficar bem duro.
- índigo carmim...
- índigo?
Deve ser o que dá o azul da pilulinha.
- Será que esse negócio não vai deixar o meu pau azul, Maria
Helena?
- E daí, se deixar? Você não sai por aí exibindo o seu
pênis, que eu saiba. Ou sai?
- Mas, e se eu for a um mictório público? o que é que o cara
ao lado não vai pensar do meu pinto azul?
- Diz que você é um alienígena, ora bolas. Que o seu corpo
está pouco a pouco se adaptando à Terra, que ainda faltam
alguns detalhes. Ou explica que você é um nobre, de sangue e
pinto azul. Ou não diz nada, ora bolas. Acaba de mijar,
guarda o pinto azul e vai embora, pô.
- Escuta. Agora vem a parte que explica como esse petardo
funciona.
- Isso. Quero ver esse petardo funcionando direitinho.
- Presta atenção. 'O óxido nítrico, responsável pela ereção
do pênis,ativa a enzima guanilato ciclase, que, por sua vez,
induz um aumento dos níveis de monofosfato de guanosina
cíclico, produzindo um relaxamento da musculatura lisa dos
corpos cavernosos do pênis e permitindo assim o influxo de
sangue:' Cacete. Corpos cavernosos Já pensou, Maria Helena?
Corpos cavernosos sendo inundados de sangue? Puro Zé do Caixão.
- Corpo cavernoso só pode ser herança do homem das cavernas.
Vocês homens evoluem muito lentamente.
- Pára de viajar, Maria Helena. Parece que fumou maconha.
- Não era má idéia. Pra relaxar. Vou roubar do Pedro Paulo.
Eu sei onde ele esconde. Podíamos fumar juntos.
- Eu já tô relaxado. Tô até com sono, pra falar a verdade.
- Lê, lê, lê, lê aí. Você já dormiu tudo a que tinha direito
nessa vida.
- Vou ler. 'Todavia, o sildenafil não exerce um efeito
relaxante diretamente sobre os corpos cavernosos..:'
- Não?
- Não, Maria Helena. Ele apenas 'aumenta o efeito relaxante
do óxido nítrico através da inibição da fosfodiesterase-5, a
qual' - veja bem, Maria Helena, veja bem - 'a qual é a
responsável, pela degradação do monofosfato de guanosina
cíclico no corpo cavernoso?'. Ouviu isso?
Degradação, Maria Helena.
Dentro dos meus próprios corpos cavernosos.
Degradante..

Degradante é pau mole.
- Olha o nível, Maria Helena! Olha o nível!! Vamos ver os
efeitos colaterais. Olha lá: dor de cabeça. Você sabe muito
bem que se tem uma coisa que eu não suporto na vida é dor de
cabeça.
- Na cultura judaico-cristã é assim mesmo, Horácio. Pra
cabeça de baixo gozar, a de cima tem que padecer.
- Não me venha com essa sua erudição de internet, Maria
Helena. Estamos off-line.
-
Deixa de ser criança, Horácio. Se der dor de cabeça você
toma um Tylenol, reza uma ave-maria, canta o 'Hava Naguila'
que passa.
- Outro efeito colateral: rubor. Rá, rá. Vou ficar com cara
de quê, Maria Helena?
De camarão no espeto?
- Se for camarão com espeto, tá ótimo. Que mais, que mais?
- Enjôos. Ó céus! Enjôos...
- Você sempre foi um tipo enjoado, Horácio. Ninguém vai
notar a diferença.
- Vamos ver o que mais... hum.. dispepsia. Que lindo. Vou
trepar arrotando na sua cara.
- Você me come por trás. Arrota na minha nuca.
- É brincadeira... É essa a sua idéia de amor, Maria Helena?
- Isso não tem nada a ver com amor, Horácio. Já disse: é
profilaxia contra o câncer. E arrotar, você já arrota mesmo
o dia inteiro, sem a menor cerimônia. Na mesa, na sala, em
qualquer lugar.
- Como se você não arrotasse, Maria Helena.
- Mas não fico trombeteando os meus arrotos. Isso é coisa de
machão broxa. Em vez de trepar com a esposa, fica arrotando
alto pra se sentir o cara do pedaço.
- Como você é simplória, Maria Helena, como você é... menor.
Desculpe, mas acho que o seu cérebro anda encolhendo, sabia?
Ou mofando. Ou as duas coisas.
- Vai, Horácio, chega de conversa mole. E de pau idem. Pula
os efeitos colaterais.
- Como , 'pula os efeitos colaterais'? É porque não é você
quem vai tomar essa meleca, né? Vou ler até o fim. Os
efeitos colaterais são a parte mais importante. Olha lá:
gases. Que é que tá rindo aí?
- Do efeito cu-lateral.
Desculpa. Esse foi de propósito. Não
agüentei..
- Admiro seu humor refinado, Maria Helena. Torna você uma
mulher tão mais sedutora, sabia?
- Obrigada, Horácio.'Agora, quanto aos seus gases, pode
relaxar o esfíncter, meu filho. Numa boa. Tô tão acostumada
que até sinto falta quando estou sozinha. Sério. Fico
pensando: Ah, se o Horácio estivesse aqui agora pra soltar
uma bufa de feijoada com cerveja na minha cara...
- Maria Helena, qualquer dia você vai ganhar o Oscar da
vulgaridade universal.
- Vou dedicar a você.
- Vamos ver que mais temos aqui em matéria de efeitos
colaterais. Ah! Congestão nasal. Que gracinha. Vou ficar
fanho, que nem o Donald. Qüém,qüém. Qüém.
- Um pateta com voz de pato. Perfeito.
- Ridículo. Absurdo. Idiota.
- Ridículo você já é, Horácio. E quem não é? Além do mais, é
só calar a boca que você não fica fanho.
- Ah, tá. E se eu quiser falar alguma coisa na hora?
- Você não diz nada de interessante há mais de dez anos,
Horácio. Vai dizer justo na hora de trepar?
- Eu não nasci para dizer coisas interessantes a você, Maria
Helena.
- Já percebi.
- Hum. Ouve só; diarréia!
- Quê?
- É outro efeito colateral dessa bomba aqui. Fala sério,
Maria Helena. Isto aqui é um veneno. Não sei como eles
vendem sem receita.

Deixa de ser pueril, Horácio. Magina se alguém vai ter
todos os efeitos colaterais ao mesmo tempo. No máximo um ou
dois.
- A caganeira e os arrotos, por exemplo? Ou a ânsia de
vômito e os gases?
- Faz um cocozinho antes. Pra esvaziar! Agora, Horácio. Eu
espero.
- Eu não estou com vontade de fazer cocozinho nenhum, Maria
Helena. Faça-me o favor. E olha aqui, mais um efeito
colateral: visão turva.
- Você bota os seus óculos de leitura. E que tanto você quer
ver que já não viu?
- Maria Helena, você não entendeu? Essa droga perturba
seriamente a visão. Vou ficar cego por sei lá quantas horas,
quantos dias. E tudo por causa de uma reles trepadinha? E se
a minha visão não voltar? Vou andar de bengala branca pro
resto da vida?
- Pode deixar que eu guio a sua bengala, Horácio. Olha,
pensa no lado bom da cegueira: você vai poder me imaginar 20
anos mais moça. Trinta, se quiser.
- Maria Helena, desisto. Não vou tomar essa porcaria e tá
acabado.
- Dá aqui essa cartela, Horácio. Abre a boca. Pronto.
Engole. Olha a água aqui. Isso. Que foi? Engasgou, amor?!
Tosse pra lá,ô! Me borrifou toda! Que nojo! Quer que bata
nas suas costas? Ai, meu
Deus! Horácio? Você está bem ?
Respira fundo! Isso, isso... E aí, amor? Melhorou? Morrer
afogado num copo d'água ia ser idiota demais, até prum cara
como você.
- Arrr! E com essa pílula monstruosa entalada na garganta,
ainda por cima! Ufff! Me dá mais água
- Quanto tempo isso aí demora pra fazer efeito?
- Isso aí o quê?
- A pílula, Horácio, a pílula.
- E eu sei lá?
- Vê na bula, Horácio.
- Hum... tá aqui: 30 minutos.
- Ótimo. Dá tempo de ver o fim da minha novela.

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